A fuga e o beijo na testa

17/06/2024

Reencontrei esses dias um texto tão íntimo e que, ao mesmo tempo, manteve vivo no tempo algo que ainda retém dignidade de partilha. Foi escrito pouco antes da minha avó falecer, no início de 2013. 

Esse tema – o trato com a velhice e as diferentes formas de deterioração do corpo e da saúde – é algo recorrente na clínica e anuncia algo que se tornará cada vez mais inescapável, já que é fato conhecido o aumento da população dessa faixa etária. É ainda mais nítido como essa experiência também pode ser profundamente adoecedora para aqueles que a acompanham. Teremos cada vez mais notícias disso como campo, inclusive, da teorização clínica.  

Ao centro, ao lado de duas irmãs
Ao centro, ao lado de duas irmãs

É meia-noite e meia, e acabo de voltar ao meu quarto, depois de passar cinco minutos ao lado da minha avó, com noventa anos, acamada em seu quarto já há trinta meses. Ouvi-a chamando pela minha mãe, que fechou a porta de seu quarto, provavelmente para proteger-se de um novo pedido. Enfim, dessa vez eu estava em casa e ouvi seu chamado, vou até seu quatro e a vejo por alguns instantes. Ela balbucia algo, mal consegue falar, mal consegue engolir sua saliva. É difícil entender o que ela pede, parece querer algo que está em cima do armário, no fundo do quarto. Geralmente resisto entrar muito dentro de seu quarto, procuro ficar próximo à porta. Vê-la doente a este ponto me é dilacerante, e este evitamento é sempre defensivo e doloroso. Resisto entrar no círculo da morte, no círculo da decomposição, no círculo dos excrementos.

Fico olhando-a em silêncio, atropelado por mil e um pensamentos angustiantes. Fico com vontade de negar-lhe tudo. Vontade de pedir que ela não demande mais nada, que não me obrigue a vê-la desse jeito. Vontade de pedir que ela morra em silêncio, e que me deixe em paz. Vontade de dar-lhe alguma bronca, de lhe criticar, de voltar para o quarto dizendo a mim mesmo que o que ela queria não era importante, que podia esperar até amanhã! Diante desta cena, me deparo com o que há de pior em mim, esta mesquinhez covarde. Assim, nos desumanizamos os dois: ela, que vai morrendo, e eu, que resisto a assumir o papel de cuidador.

Desta vez dei conta de ficar ali. Em outras tantas, não pude. Na verdade, nem se tratava da importância do seu pedido concreto. Tanto fazia, ela pedia alguma presença. Atravessei o quarto e peguei um balde com remédios. Olho novamente para ela. Ela parece querer aproveitar a luz dessa presença e pedir mais coisas, quer assegurar um estoque de objetos antes que a figura à sua frente desapareça novamente por alguns dias e a deixe recolhida em sua agonia. Ela pede algo para comer, uma mortadela, um doce, um queijo. Novamente, penso em chorar, penso em dizer não. O que estou fazendo? Por que quero dizer-lhe tantos nãos? É um não que fala em minha boca e pouco o compreendo. Talvez ele diga: não peça a mim, não me faça vê-la, não me faça desiludir-me! Lição dolorosa que custo a assimilar.

Afinal vou à cozinha, com os ombros encolhidos, uma sensação de exaustão, trago-lhe pequenos pedaços de queijo e goiabada. Ela tenta se sentar num rompante infantil, como quem descobre que ganhou uma guloseima, combinado com as severas limitações de seu corpo já quase podre. Vejo que ela mal nota o que há no prato, e tenta comer desvairadamente. Pego o prato de sua mão e dou-lhe os pedaços na boca. Ela come como um bebê. Se cheguei até este ponto, é porque consegui ficar mais tranquilo.

Hoje penso nela como uma máquina. Uma hora antes, havia conversado com a minha mãe sobre seu funcionamento... Uma máquina, é o que vem restando de minha avó. Algo que repete, que insiste, que demanda por automatismo. Onde havia elementos afetivos e intelectuais que disfarçavam a máquina, hoje já não há quase nada. Há apenas meia dúzia de comandos que resistem e funcionam, à revelia de qualquer sentimentalismo humano. Minha avó repete falas, repete cenas, repete vícios, repete descuidos, repete perguntas (e quem disse que nós, os vivos, somos diferentes?).

A lucidez vai se dissipando com os meses e é difícil responder ao que resta em seu ser. Não há mais ali uma sobreposição de camadas de corpo, não há mais ali uma sobreposição de camadas de história. Sua história agora está comigo e com os outros que a conheceram, pouco com ela. Há como que uma fruta descascada, seca, cheia de manchas e furos. O semblante vai ruindo. Está acamada, impotente, seu corpo sofre e apesar de tudo, ela ainda clama pela vida, pede a Deus e aos pastores na TV por um milagre. A mensagem final é viver a qualquer custo. Não sei se a admiro ou se a odeio por isto: viver a qualquer custo?! Que impostura! Às vezes digo por aí que jamais quero passar por isto, e que preferiria morrer antes. Que o tempo dirá? Voltarei atrás em minha palavra, caso tenha a oportunidade?

Os filmes e romances retratam despedidas bonitas e cheias de coragem, gente que não titubeia, que cuida e se despede do outro com um dom natural e admirável. Comigo isto não se passa, é difícil, é suado e atravessado por loucura – a minha – e palavrões. Tenho um lado de homem das cavernas, que prefere ir guerrear e caçar animais selvagens a limpar o ferimento de uma pessoa querida.

Louco movimento o de tentar me colocar no lugar dela. Tento conceber que tipo de condição é a sua, e oferecer o que tenho de disponibilidade, que sei não ser muita coisa. Cada vez que a vejo, demoro um tempo a realizar o percurso entre me dar conta que a avó que esperava encontrar ali, só um pequeno recorte ocupa seu lugar. Daí, quando apreendo que ali só há um pedacinho frágil, quando me desiludo e me dou conta, algo sobra em mim e que pode ser trocado com ela. Fazer-lhe companhia é sempre lidar com uma primeira derrota – a derrota do ideal – para tentar fazer algo com o que resta depois.

Ajudo-a a se deitar, cubro-a em silêncio. Enquanto ela balbucia mil perguntas sobre como vai minha vida – que já aprendi a decorar pelas sílabas hesitantes –, vejo as novas escaras que surgem em seu corpo. Entre a recriminação por minha mesquinhez e a aflição por sua fragilidade, entre a vontade de querer evitar minhas dores a qualquer custo e a angústia de pouco ou nada poder aliviar de sua condição, acaricio seu rosto e beijo sua testa. Ela apenas me olha e já não sei o que seu olhar diz, apesar de ter a cena guardada na memória: olhos verdes, que parecem tão lúcidos, óculos tortos e embaçados, dentes bambos, um enorme esforço para respirar pela boca... Uma troca de olhares em silêncio.

Entre a vontade de fugir e o beijo na testa, passaram-se cerca de cinco minutos. Foi o tempo que levei para substituir a imagem de uma avó ativa e ereta, pela máquina já muito enferrujada que chama meu nome e me pede comida. Ela já não chora, já não faz drama. Os meses na cama apagaram até seu tom melodramático. Tem sido sempre assim, e sabe-se lá quanto tempo mais precisarei para me dar conta desse desajuste. Aqui há um insight: ver a dor e o limite do outro que amo me causa uma dor que vivo como raiva. Daí eu falho em transmitir este dom maternal que recebi. Transformar minha raiva em cuidado e carinho me custa um trabalho extenuante, e o caminho que preciso percorrer para esta elaboração me parece sempre longo demais.

Talvez eu só possa amá-la vendo-a como uma máquina gasta e quase pifando. Só possa amá-la supondo que seu ser já não se encontra todo ali, que foi sendo apagado, esquecido, abandonado. Talvez eu finja que cuido de uma outra senhora, não da minha avó. De que outra forma poderia suportar olhar para ela, sabendo que é aquela avó outrora enérgica, afetuosa e maternal que está nos limites e buracos daquele corpo quebradiço?

Setembro/2012