Carta de adeus de Nestor Braunstein

07/05/2024

Em 7 de setembro de 2022, faleceu Nestor Braunstein, psicanalista argentino autor de diversos trabalhos no campo analitico, entre eles o livro mais conhecido em terras brasileiras: Gozo. Na mesma data foi divulgada na internet sua carta de despedida, que destaca uma reflexão tão lúcida quanto digna a respeito do suicídio. Por ter me sentido causado por seu convite, tomei a liberdade de traduzi-la e disponibilizá-la abaixo, em texto e em .pdf.


"Depois de ouvir e assistir a não poucas óperas, cheguei à conclusão de que, com demasiada frequência, eram um longo espetáculo que conduzia à palavra final: addio, dito em diferentes idiomas, segundo o compositor. Agora me cabe dizer o mesmo sobre as vidas humanas, começando pela minha própria.

Como dizer "adeus" a uma vida que se acaba? Sei que o habitual, o regular, o normal, é esperar a morte que deve ocorrer como consequência de uma enfermidade ou um acidente em um processo de duração variável. Entendo que se considere estranho, inclusive patológico, que um ser humano se suicide em um dado momento com a plena consciência das razões e circunstâncias de sua ação. É claro que, sendo quem fui e sigo sendo, a "plena consciência" é uma expressão ambígua, até mesmo irônica, ao levar em conta a participação do inconsciente em todo ato e especialmente no definitivo da passagem da vida à morte. ("O inconsciente não conhece a morte nem acredita nela").

No meu caso, deixo a vida sob protesto, porque a amo (Death? I'm strongly against it[1]). Posso dizer que não sou eu quem se afasta da vida, mas antes é a vida que, pérfida e obcecadamente, se afasta de mim. Vivo a situação com tranquilidade, sem angústia, sem sensação de "cansaço" ou tédio. Comprovo o progressivo e irreversível declínio de minhas capacidades vitais. Consultei a opinião de muitos especialistas e me submeti sem objeções a todo tipo de provas para objetivar o estado do meu organismo. A acumulação de diagnósticos sobre minha condição cardiovascular, respiratória, renal, locomotora, neurológica, dermatológica, etc, era esmagadora. Encontrei nos meus médicos uma resposta reiterada, encaminhada para me animar: "Sim; seus órgãos estão mal, mas não se pode esquecer que, dada sua idade, com mais de 80 anos, você pode continuar vivendo, mesmo que não existam meios para melhorar aquilo que está falhando". Sigo ao pé da letra, fielmente, as prescrições que recebi. Meus médicos são muitos, todos excelentes, coordenados pela médica internista, Dra. Maria del Pilar Brito, de quem me despeço agradecendo sua atenção amistosa.

Só me cabe aceitar os vere-ditos da ciência. Reconheço que, em muitos aspectos, minha condição é, por enquanto, privilegiada: não tenho dores nem processos progressivos que prenunciem uma data aproximada do momento da minha morte. É verdade que esse corpo e essa mente (que me permitam o dualismo), que estiveram a meu serviço durante estas décadas, agora me pedem que invertamos a relação: sou eu que devo me ocupar deles. Todos meus amigos se despedem de mim com a frase "Cuide-se" porque sabem da precariedade da vida nesta idade e mais ainda quando conhecem meus males.

"Meus amigos": eles. Muitos, maravilhosos, afetuosos, sempre presentes, dispersos em vários países, dispostos a me auxiliar como eu a eles quando necessário. Nenhum estará junto a mim no momento definitivo, mas me certifico de fazer chegar a eles esta carta de despedida. Também à minha família: Clea, minha filha, herdeira universal dos meus bens segundo o testamento assinado em Barcelona em 2020, minha irmã, minhas sobrinhas e seus descendentes. Creio haver feito e deixado disposto o necessário para que possam resolver as necessidades materiais segundo seus próprios critérios e valores.

Em poucas palavras, não estou só, não estou "deprimido" e muito menos melancólico. Vivi e seguirei vivendo os dias até que esta carta, ainda sem data, seja despachada, segundo a regra que me impus como um mandato, especialmente depois do começo da pandemia em 2020: Carpe diem. Tomei diversas disposições para prevenir o contágio, mas não deixei de viajar o quanto me foi possível desde então. Assisti a diversas óperas, exposições, concertos, filmes, templos, conferências presenciais, etc., tive vontade e oportunidade de ir, sentindo que era compreensível, ainda que pouco sensata a posição dos muitos que, por todas as partes, deixavam de viver para viver. Com frequência me senti imprudente, mas, em última instância, creio que tinha razão, sem negar o bom juízo daqueles que optavam pela proteção máxima que o isolamento fornecia. Sabia que, dada a minha idade e vulnerabilidade, não poderia sobreviver a uma infecção, ainda que, dependendo do caso, não me importava muito morrer segundo a moeda de Horácio, pois já estava "amortizado": eu nada podia reclamar da vida, a vida não podia reclamar nada de mim.

Com poucas exceções, desde o fim do ano passado, abandonei minha prática com analisantes e supervisionandos, advertido de que a interrupção, deixada ao acaso de uma notícia recebida pelo correio através de uma distância transoceânica, seria traumática. Nos últimos anos perdi entes queridos, muito queridos, ao mesmo tempo em que reforcei os laços com amizades velhas e novas.

Foram também anos em que recebi três homenagens que agradeci e senti que eram, não imerecidas, mas inesperadas, pois eram surpreendentes, já que eu não as havia buscado: o doutorado honoris causa da Universidade de Xalapa, Veracruz (2020), o convite para promover a IL Conferência de homenagem ao fundador da psicanálise na Bergasse 19, no Museu Sigmund Freud de Viena (2021) e o convite para escrever o texto de abertura da seção em espanhol do European Journal of Psychoanalysis (2022).

Ao generoso convite do Museu Sigmund Freud eu tive que renunciar em novembro passado, pois já tinha as indicações de que minha condição física me impediria de então (justamente quando escrevo estas linhas, em março de 2022) viajar, ministrar a conferência e discutir seu conteúdo falando em línguas que não domino; o Museu aceitou a minha renúncia por motivos de saúde, mas manteve a nomeação. O ensaio para o E.J.P. ("El psicoanálisis en lengua castellana[2]") foi escrito e está pronto para ser publicado este ano.

Volto ao tema do suicídio, que tão frequentemente se presta a diagnósticos selvagens, a interpretações absurdas ou equivocadas, a desqualificações apressadas sem dar ouvidos às razões que conduzem a esta determinação, que esquecem inclusive os antecedentes do suicídio assistido, pedido por Freud na primeira entrevista com seu médico em 1928 e deixam de lembrar do consentimento dele (Max Schur) quando chegou o momento em que lhe fez o pedido em 1939. Esquecem também o que poucos se atrevem a manifestar, como se houvesse nele algo de constrangedor, o fato de que Lacan se deixou morrer por negligência voluntária, uma vez que ele mesmo se diagnosticou uma enfermidade da qual podia curar-se medicamente, mas negou-se a receber qualquer tratamento (ou, talvez, segundo diversos testemunhos, por notar, com precisão, os transtornos neurológicos que acompanhavam sua piora física e mental desde 1979). É ignorar os argumentos éticos dos muitos partidários da "morte digna", da eutanásia e do suicídio assistido. Não se trata, nesses casos, de um triunfo da "pulsão de morte", sempre tão cômoda e à disposição para desqualificar o suicida como acontece nas religiões monoteístas e na psicanálise, que não é um derivado delas. A "passagem ao ato" é, em muitos casos, afirmo que também no meu, uma decisão soberana de um sujeito que se opõe à morte passiva, consensual, essa que o mundo aceita sem questionar. Uma ação frente a um impasse, não um homicídio "contra si mesmo", mas antes uma manifestação suprema da pulsão de vida, de inscrição indelével da liberdade, que nada seria sem a possibilidade de dizer "até aqui".

Haveria necessidade de repetir que o organismo quer somente apropriar-se de seu caminho em direção à morte, eigenes Weg zum Tod[3]? Haveria necessidade de recordar o texto de 1915, quando Freud evocava o adágio de Vegetius: si vis pacem para bellum[4] e o transformava em um lema orientador, comparável ao carpe diem horaciano que é: si vis vitam para mortem[5]? (Wenn du das Leben aushalten willst, richte dich auf den Tod ein[6]). O que é viver, se não antecipar e apropriar-se do caminho em direção à morte?

O suicídio premeditado, decidido em diálogo com outro ou outros capazes de escutar e deliberar com o sujeito que resolva tirar a vida sem esperar que o destino a traga, é um ato pleno de sentido; não o abandono diante de um impulso irracional, uma "passagem ao ato" como com frequência se nomeia nos casos trágicos.

Sabemos das duas formas paradigmáticas da morte escolhida: a cristã, que acaba em dores insuportáveis e em uma reclamação ao pai (Eli Eli) e a socrática, de quem toma a cicuta sem amargor, sem reclamações, sem queixas, rodado do círculo de amigos e discípulos. Busquei em vão a frase na Apologia ou no Fedón, de Platão, mas foi o uruguaio José Enrique Rodó quem a atribuiu a Sócrates: "Para quem me derrota". O suicídio do filósofo foi um forçado pela pólis, mas teria sido possível evitá-lo levando, dizia, seus ossos e tendões a Mégara ou Beócia. Escolheu seu próprio caminho preparando-se para "suportar a vida" e acabar com ela com serenidade (Gelassenheit).

Quanto à minha decisão? Direi, digo, que conquistei o direito de morrer a meu modo, sem derramamento de sangue, em Barcelona, a cidade que amo dentre tantas que conheci, no momento que escolhi, podendo tê-la antecipado ou postergado, em solidão para que ninguém possa ser acusado de haver participado em uma ação que, apesar das recentes modificações legais, impede a ação direta e impõe trâmites burocráticos que estorvam a vontade do suicida. Em 2019, no México, comprei legalmente de um veterinário o fenobarbital que hoje tomo. (Os animais podem ser mortos (killed) pelos humanos sem que isso seja um delito; os médicos não podem receitar barbitúricos nem os farmacêuticos podem vendê-lo). O pequeno frasco está nas minhas mãos há já bastante tempo, na medida em que sabia muito bem que não me precipitaria a utilizá-lo. Quando? Não quando eu sentisse vontade, mas quando a prova de realidade me impusesse certas linhas vermelhas que não me permito ultrapassar: o não reconhecimento de lugares, pessoas e espaços, a perda da faculdade de gozar da arte, do conhecimento do mundo em que vivo (política, social e economicamente), autonomia para me abastecer do que necessito, já que moro sozinho; me recuso a depender de alguém para que se ocupe de mim, o horror dos horrores!, ser levado para uma casa de repouso para idosos onde aguardaria passivamente o fim em meio a horários e companhias impostas, dores ou ossos fraturados. Nos últimos meses sofri quedas das quais me recuperei, mas que levaram ao diagnóstico neurológico de Parkinsonismo vascular; minha motricidade, especialmente das mãos, está muito limitada (não consigo, sem recorrer a abridores, abrir uma garrafa de água); até agora consegui caminhar livremente, mas não posso me imaginar viajando nem mesmo de trem a Madri, onde me sentiria tão feliz. Forneci as autorizações necessárias para a disposição do meu cadáver e a dispersão das minhas cinzas, agradecendo aos bons amigos que as executarão sem rituais fúnebres.

O que tive até o dia de hoje? O gozo da vida, com aceitação dos mal-estares da velhice: pude ler e me entusiasmar com as novas ideias e com o humor swiftiano do que minha filha escreve, sofrer o pesadelo da história da qual não podemos despertar, assistir a manifestações artísticas, desfrutar de amizades, sabores, sons, paisagens, visões, filmes e, apesar de tudo, seguir escrevendo, não com a eloquência dos meus melhores anos, lutando com as palavras, cometendo uma infinidade de erros de digitação que obrigam a correções intermináveis do que agora consigo entender, desde dentro, como o estilo tardio (Edward Said), esse estilo tardio dos escritores velhos. Ainda me espera uma última revisão desta carta de despedida antes de colocar nela uma data esperando que a data não se adiante à assinatura e ao 'enviar' no email do computador.

Não há nada a acrescentar: como escrevi em 1990 (Gozo), o suicídio é a forma mais retumbante da a-dicção. Daí a forçagem para passar à escrita, aqui formalizada com minha assinatura"

Barcelona, 7 de setembro de 2022

Néstor A. Braunstein


[1] Morte? Sou fortemente contra.

[2] https://www.journal-psychoanalysis.eu/articles/braunstein-article/

[3] "O próprio caminho rumo à morte"

[4] "Se desejas a paz, prepara-te para a guerra".

[5] "Se desejas a vida, prepara-te para a morte".

[6] "Se você quer suportar a vida, prepare-se para a morte".