Arcaica Lavoura
Outro dia me fizeram perguntas, Ana, se endereçaram às minhas dúvidas mais íntimas.
perguntaram se o amor é um diálogo entre bárbaros,
se o desejo se furta diante dos nomes que buscamos para ele ou se somos nós que nos furtamos de assumi-lo, ainda que de soslaio
se a fagulha erótica tem medo da luz ou se apenas gosta da intermitência
se a palavra ofusca ou adorna a dignidade de um gesto
se um pacto entre humanos degrada ou honra o inapreensível
se os predicados têm de fato o poder de aprisionar a potência de um sujeito ou se, por outro lado, são eles que parcialmente dão acesso a algum sabor de vida
se os grãos mudos, agudos, angustos ou dilatados, que compõem a vida, uma vez colhidos, têm algo a transmitir
se é possível de fato amar uma mulher
se a assunção do feminino passa por perdoar e nos deixarmos tapear um pouco por sua errância
se um sacrifício não é uma impostura para tentar cobrir a pobre humanidade de nossos pais
se um pai que mortificamos pode legar algum acesso à vida
se o tempo existe, Ana
se alguma nudez é possível aos seres falantes
se no sexo é possível nos despirmos de imagens e de retórica
se uma dedicatória muda pode ser signo de um desejo
se os joelhos também foram feitos para se derreter em febre
se o ódio é a matéria-prima do amor ou de onde vem esta habilidade de adorar uma ideia em sua ausência e em sua inconsistência
se um porco assado por dias é um milagre
se a viagem de cada um não conduz sempre à morte, ou seja, ao encontro com um desejo
se um cão lê
se a palavra de verdade jamais é, de fato, uma palavra de amor
se há algum traço da imagem abaixo que ainda esteja vivo em mim (já que não me lembro de sua ocasião)
se a neurose é a antecâmara do nascimento
Não soube responder, Ana... Fiquei pensando apenas que nascer é suportar construir respostas a partir dos nomes herdados dos outros. É homenagear o perdido sem recuar de novamente perder algo. É ousar servir-se dos restos do engano que esteve em nossa origem. É furar a língua e ao mesmo tempo sujar-se nela. É ter a coragem de ter um corpo que chama e se deixar chamar. É consentir que em cada desejo levado adiante há uma perda vitalizante. É descobrir-se um entre vários, submetido ao impossível. Nascer é consentir em saborear a vida fraturada junto aos demais mutilados. É emprestar nossas ruínas a uma misteriosa transmissão junto ao outro. Recuar aí é um direito, uma impostura e também uma lástima.